Um ano novo surreal em Cuba
Por mais que a gente pesquisasse, lesse, assistisse filmes e perguntasse aos amigos que ali estiveram, a viagem a Cuba ainda estava cercada de muito mistério. Entramos no avião Tupolev russo com muitas dúvidas sobre o que nos esperava na ilha. Desembarcamos em Havana no dia de Natal e fomos recebidos no casarão número 28 da Calle Cristo pela Nancy e o Viamontes, casal com uma hospitalidade inesquecível. Inundamos os dois com muitas perguntas, mas essencialmente nos interessava saber como passavam o Ano Novo lá. Não sabíamos se a virada era comemorada com cataratas de Rum ou singelamente assistida pelas famílias como mais um dia que se encerrava para dar lugar a outro.
Se nos recomendavam sair para a rua? Sim, mas que tomássemos cuidado com os ovos. Sim, ovos. É tradição passar um ovo cru pelo corpo, limpando as más energias, e depois arremessá-lo à rua para que estourasse as mazelas e as gemas no chão, nos explicou atentamente Nancy. Depois de uma deliciosa ceia, por volta das dez da noite, nos aventuramos a céu aberto naquela noite de 31 de dezembro. Na caminhada rumo à praça do Capitólio, onde pegaríamos um táxi, eu entendi o porquê do cuidado que nos foi recomendado. Vivemos algo próximo de estar sob ataque aéreo: uma verdadeira chuva de ovos anunciou que aquela noite não seguiria nenhum script. A sorte nos acompanhava e não fomos atingidos por nenhum ovo na cabeça, mas sobraram alguns respingos de gema nas nossas roupas. Nada grave.
Nossa primeira parada foi em um casarão antigo, indicação de um taxista que nos prometeu levar a um típico bar “de cubanos”. Decorado com serpentinas no seu exterior, parecia que ali aconteceria uma grande festa. Um banner com uma foto em média resolução anunciava a atração da noite: “Wil Campa y su orquesta en una noche inolvidable”. O salão levava uma mistura de carnaval de cidade do interior com festa de formatura dos anos 80: cortinas brancas rendadas com laços no topo, fitas sintéticas coloridas nas mesas e cadeiras, uma bexiga gorda no teto que em algum momento estouraria e jogaria em nós alguma coisa. Um mestre de cerimônias intervinha periodicamente na música de fundo aguçando a expectativa do público. No palco, instrumentos sugeriam uma grande banda e ao fundo um cronômetro saltitava no telão contando os minutos regressivamente.
A voz grave do mestre contou os aguardados últimos dez segundos do ano, seguido da explosão da bexiga gorda. Uma chuva de balas, doces e animais feitos com bexiga caiu em nós, que ríamos e celebrávamos o Ano Novo com mais dois amigos. Um estouro interrompeu a celebração e jogou o foco sobre o palco: quinze homens vestidos com sobretudo azul e máscara (aquela do V de Vingança) iniciaram uma coreografia de breakdance, que de maneira mirabolante se encerrou com cada um postado no seu instrumento. Uma salsa frenética anunciou a entrada do Wil Campa, um homem baixo e queimado de sol, com pinta de ex-galã, que nos desejava feliz ano novo e prometia esquentar o ambiente com muita música. Fazia uns 35 graus.
Depois de dançarmos não totalmente à vontade naquele ambiente surreal, se bem que embalados pelos daiquiris e margaritas perigosamente baratos, resolvemos sair à rua. Pegamos um táxi rumo ao Hotel Nacional, pois alguém havia nos dito que algo estava acontecendo lá. Não estava. O gramado do hotel, que fica no topo de um morro, tem uma bela vista para o mar, e naquele momento tinha um clima de pós-festa. Os turistas abastados já estavam recolhidos, mas suas bebidas permaneciam nas mesas. Usufruímos da situação e montamos um pequeno bar “reciclado”, desfrutando daquele ar glamuroso decadente que o prédio exala. Da nossa mesa era possível ver o Malecón, a orla rochosa que beira a parte mais nova de Havana.
Avistamos lá embaixo um grupinho de pessoas tocando violão e resolvemos descer. A alguns passos deles, começamos a ouvir um coro semi-embriagado cantando “E eeeeuuu, gostava tanto de vocêêêê”. Estávamos afetados pela sequência de fatos inacreditáveis que já havia acontecido naquela noite e a música nos acolheu com o conforto do lar. Caminhamos animados em direção a eles, já cantando Tim Maia abraçados e dançando. Lembro que a Sophia apertou meu braço e me perguntou ao pé do ouvido: “É o Raí?”. Nossa noite ganhava um novo elemento surpresa! O tetracampeão, jogador, filantropo e mundialmente famoso Raí estava curtindo seu Ano Novo na orla de Havana, cantando numa rodinha de violão e tomando cerveja quente.
Claro que a gente foi falar com ele. Simpático como ninguém, nos contou sobre sua viagem pela ilha, apresentou-nos sua namorada, seus amigos (que acabara de conhecer), compartilhou da sua cerveja quente conosco. Perguntei se aquelas pessoas sabiam quem era ele. Ele levou o dedo indicador à boca, pedindo meu silêncio, que foi respeitado. Desfrutava do anonimato com toda a alegria. Passamos algumas horas cantando, conversando, bebendo e curtindo aquele Réveillon que nem acabara mas já era histórico.
Nossa viagem por Cuba seguiu por mais 20 dias. Cruzamos a ilha até Santiago, fomos na Sierra Maestra, andamos à cavalo em Trinidad, dançamos e curtimos a belíssima Baracoa...Tudo muito gostoso, mas chegou a hora de voltar. Chamamos um táxi na Calle Cristo número 28, nos despedimos da Nancy e do Viamontes, pusemos a bagagem no porta malas e indicamos ao motorista o aeroporto. Conversa vai, conversa vem, o cara se revela um grande conhecedor e admirador do futebol canarinho. Lançou mão de todo seu repertório: escalou a seleção de 1970 e de 1982, lembrou causos das copas do mundo, falou do Garrincha, do Neymar. Fez questão de nos mostrar que levava na carteira a escalação brasileira para a Copa de 2014 e, apesar do nosso fracasso retumbante, conservava o documento, como quem quer viver congelado no momento que antecede a tragédia. Então, disse com uma seriedade solene, “mas há um jogador que está acima de todos e esse cara é o Raí. Que jogador!”.
Eu e Sophia nos olhamos, nos sentindo teletransportados para o nosso ano novo, como se faltasse aquela peça pra encerrar nosso dia, inaugurado vinte dias antes. Depois de rir um bocado, abrimos o jogo pro taxista, que quase bateu o carro ao descobrir que seu ídolo pisava o mesmo solo que ele. “Raí en la isla!”, “no creo!”, “por Dios!”, exclamava esbaforido, tentando se manter apto a dirigir, suando frio. Nos contou que o filho chamava Raí e a filha Ria (anagrama de Raí), que seguia os passos do ex-jogador, que jogava bola inspirado nele. Um verdadeiro devoto! Nos despedimos do Rafael no aeroporto com a sensação de deixar pra trás um lugar muito especial, com a certeza de que iríamos voltar pra desfrutar mais uma vez da magia que aquela ilha caribenha tem! Hasta luego, Cuba!
Preparar uma viagem, pesquisando sobre a história, os costumes e a cultura de um lugar, é essencial para você curtir ao máximo e gastar o mínimo na estrada. Nosso projeto, Caudalosa América, exigiu uma preparação de quase 2 anos. São várias medidas e precauções que tomamos pra tentar evitar percalços e situações delicadas. Mas se jogar no acaso, mergulhar na surpresa, é o impulso que nos move a sair por aí num carro rumo ao Alasca. Que venham novas chuvas de ovos, salsas malucas, encontros misteriosos e lugares incríveis!
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COMENTÁRIOS:
Raquel Martins de Andrade comentou 9 anos atrás
Woowwwww.. demais!