O templo dos ratos
Pensei em começar este texto descrevendo centenas de ratos mortos apodrecendo, roedores disputando o pouco espaço ao redor de uma vasilha de leite, ratos sem perna, rabos decepados, falhas no pêlo, meu medo de algum daqueles bichos escalar meus pés descalços, o cheiro de excremento, o vômito parado na garganta, o barulho da rataria brigando e correndo por todos os lados, o mantra indiano cantado incessantemente para aquelas pragas divinas.
Mas existem histórias que não cabem em palavras.
E essa é uma delas. Eram quase quatro da tarde quando Krishna, nosso motorista contratado em Nova Déli para rodar o Rajastão, na fronteira com o Paquistão, estacionou seu Tata branco de quatro portas e sem ar condicionado na frente do Karni Mata Temple. Fazia mais de 40 graus e estávamos no meio da estrada empoeirada.
Como em qualquer local sagrado indiano, tiramos nossos sapatos na porta e pagamos uma rúpia (quase quatro centavos de real) para um homem guardar nossos tênis enquanto fazíamos a visita. Descalços, passamos pela porta bege toda entalhada, com um tridente e bandeiras vermelhas no topo. Toda e qualquer semelhança com as dezenas de templos que já havíamos visitado acabou a partir daí.
Pelo chão, deitados nos cantos, subindo as paredes, correndo pelo teto, ratos e mais ratos infestavam todo o lugar. E não eram ratos simpáticos ou pelo menos normais. Os mais de 20 mil roedores que existem no templo, segundo as contas do próprio local, são feios, sujos, defeituosos, com membros a menos, rabos cortados e um desejo íntimo de te passar leptospirose na primeira oportunidade.
A infestação provavelmente começou porque o templo é famoso por receber leite, água e milho como oferenda à deusa Karni Mata, colocados em grandes vasilhas de alumínio no chão. Os ratos aproveitaram a boca-livre para tomar conta do espaço, beberem a água, nadarem no leite, espalharem o milho e atravessarem pelo meio dos pés descalços dos fiéis e curiosos como se as pessoas simplesmente não existissem.
O cheiro beirava o insuportável. A mistura de comida apodrecendo por causa do calor, fezes e urina espalhados e corpos de roedores que morreram e ficaram apodrecendo pelos cantos sem ninguém se preocupar em retirá-los dá ânsia de vômito. Nem os indianos, acostumados ao caos e a diversas bizarrices, acham a situação normal. Eles andam com cuidado e desconforto. Enquanto eu tentava desviar das poças de urina mais concentradas, um menino chorava e era arrastado pelo braço pelos pais. Parece que só a fé faz os indianos seguirem em frente. Eles ouvem o mantra cantado incessantemente no templo como um estímulo contra a vontade de sair correndo dali.
Além de transformar qualquer coisa em misticismo, a Índia tem também o poder de colocar em prática a máxima do “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Para os indianos, os ratos dão proteção ao prédio. E é por isso que um exército de dedetizadores não entra por lá ou milhares de ratoeiras não são espalhadas por debaixo dos altares. Ali os ratos são sagrados. Além disso, existe uma crença de que é sinal de boa sorte encontrar um rato branco no meio da rataria cinzenta. Segundo Krishna, no passado havia apenas um rato branco no templo. Hoje, estima-se que sejam três ou quatro.
Nós conseguimos encontrar um deles. Estava deitado, imóvel, parecia morto. Mas Krishna jurava de pé junto que não. De qualquer forma, acho que ver aquele bicho albino foi realmente um sinal de boa sorte. Ao sair de lá, entrei no carro e, durante todo o trajeto, limpei meus pés com álcool gel, rezando aos elefantes, brahmas, deuses, orixás para que meu pé não caísse ou ficasse verde para o resto da vida. Deu certo. Nem micose peguei.
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COMENTÁRIOS:
Fernanda Avila comentou 9 anos atrás
Nossa, fiquei chocada! Esse lugar poderia entrar para o ranking dos 1000 lugares para não conhecer antes de morrer
Vinicyus Vieira comentou 9 anos atrás
Achei seu texto SENSACIONAL!